De Igors Rausis a Isa Kasimi: Entrevista com um trapaceiro
A notícia de que o jogador anteriormente conhecido como Igors Rausis voltou a jogar um torneio de xadrez teve grande repercussão em todo o mundo. O Chess.com conversou com o ex-grande mestre, que agora usa o nome de Isa Kasimi, na tentativa de entender mais sobre o caráter de um trapaceiro.
Rausis nasceu em 1961 em Komunarsk, uma pequena cidade na província de Lugansk, leste da Ucrânia. Seu interesse pelo xadrez veio um pouco tarde; Ele tinha 14 anos quando começou a jogar por correspondência, antes de passar para o presencial. Enquanto estudava em Sebastopol (Crimeia, Ucrânia), ele começou a jogar mais seriamente e decidiu ingressar no Palácio dos Pioneiros em Simferopol.
Rausis se formou em medicina e se especializou como neurologista. Ele trabalhava no pronto-socorro em Sevastopol e era paramédico. “Na verdade, não era um trabalho difícil; recebíamos duas ou três ligações por dia”, diz ele. "No resto do tempo eu jogava xadrez com o motorista."
Embora nessa época ele já fosse um enxadrista mais sério, seu interesse logo mudou para o treinamento. Ele se mudou para a Letônia em 1984, onde começou a treinar a seleção juvenil nacional em Riga. Entre seus alunos estava o GM Alexei Shirov.
Pouco depois ele conquistou o título de treinador profissional em Moscou, especificamente em 1988. Por volta dessa época, aos 27 anos, ele obteve o rating FIDE pela primeira vez em sua carreira e em 1991 tornou-se Grande Mestre. Representou a Letônia em três Olimpíadas (1996, 1998 e 2002).
Rausis trabalhou como treinador em vários países. Ele esteve entre 2003 e 2007 em Bangladesh e representou o país como jogador durante esses anos. Desde 2007 ele joga pela República Tcheca e em 2018 obteve o título de Treinador FIDE.
Até agora tudo normal. Ou não?
Bem, havia algo mais. Entre 2013 e 2019, o grande mestre letão-tcheco levantou suspeitas depois de aumentar seu rating de 2500 para quase 2700 em um período de seis anos, quando ele estava na casa dos cinquenta. Como isso foi possível?
Foi em julho de 2019 que a situação piorou. Rausis foi investigado oficialmente por trapacear depois de ser pego com seu telefone durante uma partida no Estrasburgo Open, realizado de 10 a 14 de julho, na França. Um telefone foi encontrado em um banheiro que acabara de ser usado por Rausis, que assinou uma declaração de que o telefone era dele. A infame foto que logo foi divulgada na internet foi o golpe final.
Em dezembro de 2019, a Comissão de Ética da FIDE baniu Rausis por seis anos dos torneios oficiais da FIDE e retirou seu título de Grande Mestre.
Depois disso, não houve mais notícias de Rausis, até que ele apareceu de repente em um torneio em Valka, na Letônia, no sábado passado. O GM Arturs Neiksans só soube de sua participação, com um nome diferente, após a segunda rodada. Depois de seus repetidos protestos, Rausis decidiu deixar o torneio.
A notícia teve um grande impacto nas redes sociais. Parece haver duas linhas de pensamento: uma de que ele não foi punido o suficiente e outra que considera que, legalmente, ele tinha o direito de jogar o torneio do sábado passado.
O Chess.com falou com Kasimi, como vamos chamá-lo a partir de agora, na tarde de domingo via Skype. A primeira pergunta: o que aconteceu exatamente no sábado?
"Pouco antes do início da terceira rodada, Arturs se aproximou da minha mesa e falou algumas palavras ao meu oponente", explica Kasimi. “Meu oponente se levantou e os dois foram falar com o árbitro. Então Neiksans anunciou na frente de todos que eu estava usando um nome estrangeiro, que eu sou um trapaceiro e que estou proibido de participar de torneios. Mas as três coisas são falsas. Em primeiro lugar, metade do salão de jogos me conhecia. Você pode mudar seu nome, mas não pode esconder seu rosto. Moro aqui desde 1980."
Metade do salão de jogos me conhecia. Você pode mudar seu nome, mas não pode esconder seu rosto.
De acordo com Neiksans, você estava usando sua máscara para esconder sua identidade? "Bem, ele deve viver na lua. A Letônia é um país pequeno e eu já joguei como Isa Kasimi. Além disso, sou formado em medicina e sei a importância de usar máscara. Não usei para me esconder."
Kasimi mostrou ao Chess.com seu novo passaporte em uma entrevista publicada no início deste ano. Os dois torneios que ele havia jogado anteriormente com o novo nome eram um Fischer Random e um "xadrez com dados". O torneio em Valka, neste fim de semana, foi seu primeiro torneio normal desde que foi banido.
Kasimi sugeriu que o protesto de Neiksans era mais pessoal: "Todo mundo conhece meu rosto e me cumprimenta, exceto Arturs, é claro. Mas eu o entendo. Como um grande mestre, ele pode se sentir desconfortável em cumprimentar um trapaceiro. Muitos jogadores disseram que nunca mais apertariam minha mão.
"Metade do salão do torneio sabia que eu estava jogando, mas eu realmente não tinha certeza se Neiksans sabia. Do contrário, ele não teria falado tão duramente. Dito isso, eu não consigo imaginar que ele poderia ter medo de mim. Meu nível de jogo é muito mais baixo do que anteriormente."
O torneio era de partidas rápidas e não foi homologado pela FIDE, porque o organizador demorou para fazer o registro. Segundo Neiksans, essa foi uma "brecha" usada por Kasimi para voltar a jogar, mas ele discorda.
"Eu tinha certeza de que não era válido para rating FIDE. O lugar fica muito longe de Riga... Eu perguntei à federação, ao responsável pelo rating da nossa federação e liguei para o organizador, então eu verifiquei essa informação três vezes."
Então, se ele não está escondendo sua identidade, por que não jogou com o nome de Rausis? “Porque o nome Rausis está muito manchado. Em primeiro lugar, eu sinto muito por toda minha família. Até minha filha ficou com vergonha dessa história. Essa foto no banheiro, você não pode imaginar, foi publicada em todo lugar, em todas os meios de comunicação, principalmente aqui na Letônia."
Kasimi fala com calma e de alguma forma está de bom humor. Seu comportamento é amigável e ele não parece excessivamente atormentado pela nova tempestade de acusações. “Não me sinto muito impactado com o que aconteceu ontem”, admite. “Porque agora percebi que o meu desejo não era regressar ao mundo do xadrez depois do que aconteceu em Estrasburgo. Ontem, me arrependi de ter voltado ao xadrez”.
Ontem, me arrependi de ter voltado ao xadrez.
Kasimi também queria destacar que ele deixou voluntariamente o torneio em Valka no último sábado. "Eu não fui expulso. Essas foram as palavras de Neiksan. Foi uma decisão totalmente consciente. Foi uma decisão espontânea. A única coisa simpática do organizador foi que ele me devolveu a taxa de inscrição."
Depois de discutir o que aconteceu neste fim de semana, é hora de passar para a pergunta inevitável. Por quê? Por que ele trapaceou? Por que, como grande mestre, ele pegou aquele telefone e analisou a partida com a engine - o maior pecado do xadrez?
Com certa relutância, Kasimi conta que tem câncer, "em uma área sensível para os homens", como ele mesmo descreveu. Ele foi diagnosticado em 2003 e está tomando remédios desde então. Ele também começou a fazer quimioterapia desde 2018.
É por isso que ele precisa usar o banheiro com bastante frequência, inclusive durante as partidas. "Meu maior medo é que o banheiro esteja em outro prédio."
Dois dias antes do início do torneio de Estrasburgo, ele havia concluído sua sexta sessão de quimioterapia. "Eu estava completamente louco, tinha perdido a cabeça. Não deveria ter ido, mas queria cruzar a barreira dos 2700."
Kasimi enfatiza que não quer usar sua situação física como desculpa: "Eu assumo total responsabilidade por minhas ações. Não posso culpar minha fraqueza ou minha doença ou o que seja. Fiz coisas muito perigosas que podem prejudicar todo o mundo do xadrez. Eu acredito que fiz a coisa mais prejudicial que você pode fazer pelo xadrez."
Eu assumo total responsabilidade por minhas ações. Não posso culpar minha fraqueza ou minha doença ou o que seja. Fiz coisas muito perigosas que podem prejudicar todo o mundo do xadrez.
Ele é uma das pessoas que acredita que a trapaça no xadrez é comum em torneios presenciais, dizendo: "Você quer saber quantas vezes joguei contra um trapaceiro? Inúmeras vezes."
Quando questionado sobre uma explicação mais detalhada, Kasimi menciona o nome de Sigmund Freud. "Você pensa nisso o tempo todo, seja como jogador ou como treinador. Passei muitas noites sem dormir pensando nessas coisas. Naquela noite, quando aconteceu em Estrasburgo, eu imediatamente entendi todas as consequências."
E quanto a todos aqueles torneios que ele jogou contra adversários muito fracos? Parecia deliberado continuar aumentando seu rating artificialmente?
“Quando a quimioterapia começou, percebi que não conseguia mais manter o meu nível”, diz Kasimi. "Dois dos meus alunos eram da Itália, então joguei dezenas de torneios italianos e também comecei a jogar torneios para veteranos. A maioria dos meus adversários tinha 300, 350 pontos de rating a menos do que eu, então não foi uma surpresa eu fazer 8,5/9 ou 9/9.
“Mas essas coisas são muito delicadas. Quando você começa a falar do tratamento... A Comissão de Ética da FIDE foi informada que eu fazia parte do que se chama de primeiro grupo de invalidez. Em alemão, chama-se Schwerbehinderter [deficiência grave]. Você perde 100% da sua capacidade de trabalho. A propósito, você notou que a foto foi tirada no banheiro de deficiente?"
Kasimi diz que caminhava "lentamente" em Estrasburgo, o que significa que estava usando muletas - como em Valka, neste fim de semana. "Preciso de mais tempo para chegar ao banheiro do que uma pessoa normal, e ele ficava do outro lado da sala de jogos."
Essas palavras acabaram sendo apenas uma introdução a algum tipo de pedido de desculpas. Ele continua: "Eu não deveria ter ido lá. Eu deveria ter abandonado o torneio quando me senti muito mal. Em vez disso, fui para o banheiro."
Eu não deveria ter ido lá. Eu deveria ter abandonado o torneio quando me senti muito mal. Em vez disso, fui para o banheiro.
Quando o veredito da Comissão de Ética da FIDE foi publicado no ano passado, foi revelado que Kasimi confessou dois casos anteriores em que usou seu telefone durante uma partida (e um caso de combinar o resultado de uma partida).
"Sim, joguei essas duas partidas contra o mesmo jogador, um Grande Mestre muito forte", explica Kasimi. "Nomeá-lo publicamente seria injusto da minha parte, mesmo na minha condição atual."
Novamente, a pergunta é: por quê? Kasimi diz que estava relacionado a algo ocorrido um ano antes.
"Esse jogador tcheco me atacou na mídia. Na verdade, tudo começou online. Ele começou a escrever que havia algo suspeito sobre Rausis. Mas ele começou a suspeitar de mim por um caso insignificante. Foi quando se tornou proibido ter um telefone com você. Ele tinha que ser desligado e colocado em sua jaqueta ou em outro lugar.
“Eu ainda estava usando um celular antigo e durante a nossa partida percebi que ele estava no bolso da minha calça. Para ser sincero, eu tirei o telefone do bolso e coloquei sobre a mesa, apenas mostrando que eu estava ‘limpo’. Meu oponente ganhou a partida e depois escreveu sobre ela e analisou. E ele também mencionou esse incidente com o celular."
As pessoas começaram a falar sobre Rausis em fóruns online e a suspeitar dele, também por causa do seu rating. Aos 55 anos, ele cruzou a barreira dos 2600.
Pela segunda vez em sua carreira, ele entrou no top 100 do mundo. Ele conseguiu isso pela primeira vez no início dos anos 90, quando ficou em torno do 80º lugar por alguns meses. “Considerando a inflação, acho que 2575 na década de 90 é como 2675 hoje em dia”, diz ele.
"Então, eu enfrentei o homem que me acusou. Eu não senti nenhuma simpatia por ele. Mas agora... estamos falando sobre o lado negativo da alma humana. Você realmente quer conhecer a minha alma?
Mas agora... estamos falando sobre o lado negativo da alma humana. Você realmente quer conhecer a minha alma?
“Está bem, vou contar a história toda. Meu adversário está sempre bem preparado e eu saí da abertura quase perdido. Mas eu não queria perder essa partida, porque meus resultados anteriores com ele foram meio catastróficos. Eu só empatei uma vez com ele e sofri muitas derrotas. E aí peguei o meu celular, era um iPhone 4, com um programa de xadrez, e fui ao banheiro."
Kasimi morava na República Tcheca, mas decidiu se mudar para Riga após o incidente em Estrasburgo. A maior parte da sua família mora na Letônia; Ele tem duas filhas e dois netos. Ele é divorciado da sua primeira esposa, WGM Olita Rause, mas eles têm um bom relacionamento.
"Ela me ajudou. Ela providenciou comida e graças a ela consegui me locomover, porque ela tem carro." Ele agora recebe uma pequena pensão do governo da Letônia e tem transporte gratuito para todo o país.
A trapaça, o banimento, a foto, tudo mudou sua vida drasticamente, mas foi por sua própria culpa. “O maior problema era minha família”, diz Kasimi. “Todo mundo estava chateado, mas todos eles me apoiaram, isso é o principal”.
Pela segunda vez na vida, ele decidiu mudar de nome. Seu nome de nascimento era Igor Kondylev, mas ele mudou para Rausis quando era jovem, após se casar com sua primeira esposa. Esse nome agora está para sempre vinculado à foto do banheiro.
Ele adotou o sobrenome da sua atual esposa Ajgul Kasimova, que agora está na República Tcheca, mas não pode viajar para a Letônia devido à situação do corona.
"A escolha por Kasimi foi fácil. Achei que seria bom usar o nome da minha esposa, a quem amo muito. E então decidi mudar Igors também, porque Igors nunca é pronunciado corretamente na Letônia."
Kasimi, que tem um interesse particular por idiomas, explica que escolheu um nome que termina com 'i' e, portanto, não exige o 's' obrigatório no final, como a maioria dos nomes letões. (Alguns de vocês devem saber que Mikhail Tal era na verdade chamado Mikhails Tals em seu país.)
"Eu decidi que Igors estava errado e Igors tinha feito algumas coisas ruins em sua vida, então era melhor eliminá-lo."
Eu decidi que Igors estava errado e Igors tinha feito algumas coisas ruins em sua vida, então era melhor eliminá-lo.
E a família dele, eles fizeram a mesma pergunta? Por quê? "Minha esposa não conseguia me perdoar por eu nunca ter falado sobre isso. 'Por que você trapaceou tantas vezes e nunca me contou?' ela perguntou. Mas você sabe, é humano. Foi realmente muito cruel."
E agora? Questionado sobre o futuro, Kasimi diz que está em dúvida se deve tentar jogar mais xadrez durante sua suspensão ou depois. "Assim que essa suspensão acabar, você pode imaginar o caos se eu voltar ao xadrez? Em primeiro lugar, o rating, porque a Comissão de Ética da FIDE decidiu que o rating permanece inalterado - uma decisão muito ilógica, a propósito. E eles removeram o título de grande mestre, que eu consegui em 1991, quando os computadores nem existiam. Bem, o computador existia, mas os programas de xadrez não".
Em vez disso, ele escolheu voltar a estudar. “Estou dando o meu melhor para melhorar a minha condição física e recomeçar a minha carreira profissional. Não posso mais me chamar de médico depois de tantos anos sem exercer a profissão, mas estou tentando voltar. Em primeiro lugar, tenho que mudar minha especialização para me tornar um administrador médico. Meu diploma soviético da década de 1980 é reconhecido, mas preciso fazer alguns exames. Já passei no exame de proficiência em letão no mais alto nível."
Kasimi continua a treinar jovens talentos em Riga e voltou a jogar xadrez por correspondência. A volta ao xadrez no sábado passado mostrou uma coisa: depois de tudo o que aconteceu, ele ainda não perdeu o amor pelo jogo.
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