Jogadoras de xadrez são assediadas com cartas obscenas por mais de uma década
AVISO: Este artigo contém informações perturbadoras de natureza sexual.
Por mais de uma década, cartas com páginas de revistas pornográficas e preservativos usados foram enviadas a pelo menos 15 enxadristas. Esta notícia preocupante foi revelada essa semana pelo jornal online Meduza, que também afirma ter descoberto a identidade do autor do crime.
Em um extraordinário exemplo de jornalismo investigativo, as autoras da Meduza, Kristina Safonova e Lilia Yapparova, descrevem detalhadamente as cartas, entrevistam um grande número de jogadoras e personalidades envolvidas e, com a ajuda de um hacker ativista, rastreiam o provável culpado, um MI letão.
As cartas, enviadas principalmente para jovens russas, mas às vezes também para adolescentes, são realmente perturbadoras, descritas em detalhes no artigo:
O envelope geralmente contém uma página de uma revista pornográfica com uma ou mais fotos. (...) O remetente dobra a página ao meio e coloca uma camisinha dentro. No preservativo: esperma. Ele usa envelopes brancos; se o envelope tiver um visor transparente, ele o fecha cuidadosamente com um pedaço de papel. Ele cola um selo postal — com a imagem de flores silvestres azuis, papoulas vermelhas, um cogumelo brilhante, um texugo na grama ou um satélite espacial. Em seguida, ele escreve o endereço do destinatário — com uma caligrafia irregular, levemente infantil — e deixa a carta em uma caixa de correio em Riga.
As cartas foram enviadas para pelo menos 15 jogadoras. Às vezes para a casa delas, mas às vezes também para o clube ou a universidade. Segundo Meduza, cinco das jogadoras tinham menos de 18 anos quando receberam as cartas, e as demais, menos de 30. A primeira carta encontrada foi enviada em 2009. O caso mais recente veio à tona durante o FIDE Chess.com Grand Swiss de 2021 (veja abaixo).
De acordo com o artigo, entre as jogadoras que receberam tais cartas estão a GM Valentina Gunina, IM Bibisara Assaubayeva, IM Alina Bivol, IM Anastasia Bodnaruk, IM Anastasia Savina, WGM Daria Voit, WGM Dina Belenkaya, WIM Irina Utiatskaja e WIM Anna Styazhkina. Bivol, de 26 anos, parece ter recebido mais cartas do que qualquer uma: 15 no total. Ela recebeu a primeira quando tinha 17 anos.
O remetente usou uma grande variedade de nomes, às vezes com endereços reais, para fingir que essas pessoas estavam por trás das cartas. Por exemplo, a carta de Assaubayeva, enviada ao Clube de Xadrez de Moscou com seu nome (em 2018, quando ela tinha apenas 14 anos) tinha o nome do campeão mundial da FIDE, GM Alexander Khalifman, incluindo seu endereço em São Petersburgo, no verso do envelope.
Liana Tanzharikova, mãe de Assaubayeva, entrou em contato com a polícia. Ela nunca acreditou que Khalifman estava por trás da carta e publicou um artigo sobre o incidente no site russo chess-news.ru.
As jogadoras, compreensivelmente, não se sentiram à vontade para discutir esse assunto, o que pode ser uma das razões pelas quais levou uma década para que a grandeza do caso viesse à tona. Uma jogadora comentou que ela não queria "satisfazer o orgulho do remetente". Além disso, nem todas as jogadoras foram afetadas da mesma forma.
O Chess.com falou com Valentina Gunina, que recebeu cinco cartas no total. A primeira em 2013, quando ela tinha 24 anos. Em uma conversa online, ela disse: "Isso realmente não me afetou. Acho que já tinha idade suficiente".
A última vez que Gunina recebeu uma carta foi no FIDE Chess.com Grand Swiss, no início de novembro, em Riga. Pelo menos mais duas jogadoras receberam uma carta durante aquele torneio.
"Todo mundo ficou muito chocado", disse Gunina, que entrou em contato com as outras jogadoras depois. Até Riga, ela não sabia que outras jogadoras também recebiam essas cartas. "Ninguém falou sobre isso, então pensei que só eu recebia."
Depois que uma das jogadoras abriu uma carta, a equipe do hotel imediatamente entrou em contato com a polícia e começou a interceptar outras cartas.
A FIDE então atuou como intermediária entre as jogadoras e a polícia, que iniciou sua investigação enquanto o torneio ainda estava em andamento. "Pedimos à polícia para não perturbar as jogadoras mais do que o necessário, e eles agiram de forma muito profissional", disse a Diretora Administrativa da FIDE, Dana Reizniece-Ozola, ao Chess.com, acrescentando: "As jogadoras foram muito cooperativas e prestativas."
De acordo com Reizniece-Ozola, uma investigação policial está em andamento na Letônia. A FIDE também anunciou isso no Twitter:
We would like to thank the Latvian police for their discreet and fast reaction. Since FIDE has become an official party in the criminal case that has been initiated in Riga, we can’t comment further on this matter, to avoid interfering in the ongoing investigation 2/2.
— International Chess Federation (@FIDE_chess) February 7, 2022
A polícia russa foi informada em 2019, mas ainda não deu muito resultado. De acordo com uma fonte da Meduza que sabe sobre o andamento da investigação, os investigadores não viram nenhum crime nas cartas e se recusaram a abrir um caso.
Mas agora a polícia letã também está envolvida e a pesquisa da Meduza certamente ajudará na investigação, pois as autoras parecem ter fortes argumentos sobre quem é o remetente das cartas. Com a ajuda de especialistas em caligrafia, operadores de fóruns, um provedor de internet e um hacker ativista, elas suspeitam de um IM letão ativo em fóruns russos com o nome "Afromeev's Cat". Como se viu, ele também é suspeito pelos jogadores letões de ter adquirido desonestamente o título de IM. Mas não há provas disso.
A WGM Anna Burtasova, cuja irmã mais nova recebeu uma carta em 2012 (também "assinada" por Khalifman), passou algum tempo tentando descobrir quem poderia ser a pessoa por trás do "Afromeev's Cat". Suas postagens no fórum, às vezes perturbadoras, tinham semelhanças com as cartas. Em um fórum, essa pessoa usou (e ainda usa) uma foto de Burtasova como foto de perfil. Como Meduza descobriu, ele até usou o sobrenome dela como resposta à sua pergunta de segurança para recuperar sua senha.
Burtasova tem certeza de que Meduza encontrou o criminoso, e que é a mesma pessoa que está ativa online como Afromeev's Cat: "Eu não conheço o cara, mas a prova que elas dão parece indicar que é ele. Acredito na investigação da Meduza."