A modernização do xadrez e criação da FIDE
Texto escrito por @coleskovicz.
Muito antes do xadrez ter milhões de bases de dados, estudos, livros e alcance mundial, já existiam jogadores de alto nível e pretensões competitivas. O jogo como o conhecemos visualmente é o mesmo desde o século XV, mas alguns pontos de divergência faziam com que fosse virtualmente impossível criar um campeonato ou torneio com pessoas de diferentes lugares—cada um tinha uma “regra da casa”. Por isso, era necessário oficializar tudo isso para que o jogo fosse o mesmo no mundo inteiro; assim, o xadrez se modernizou.
Existiam publicações de regras do xadrez desde 1497, mas elas apenas retificavam o movimento das peças e divergiam sobre uma série de outros assuntos. O processo de modernização do xadrez não teve a ver necessariamente com a criação de novas regras, e sim o estabelecimento delas e a inclusão oficial de algumas “novidades” datadas ainda do século XV, quando o en passant e o movimento de duas casas do peão foram criados, além de uniformizar as regras de promoção e afogamento. Mas essa padronização foi bem gradativa.
O primeiro livro oficial de regras do xadrez
O movimento em prol da adoção de leis universais no xadrez começou na Itália, no século XVI, mas demorou até que as regras fossem finalmente definidas e adotadas, o que ocorreu apenas nos anos 1800. Nesse período, foram fundados os primeiros clubes de xadrez e normalmente se adotavam as regras impostas em livros teóricos de diferentes enxadristas, como os de Philidor (o mesmo do xeque-mate e da abertura!); mesmo isso era muito caótico e gerava muitas desavenças entre os enxadristas, já que cada um seguia baseando-se no autor que o ensinou.
Finalmente, em 1851, Howard Stauton publicou o primeiro livro oficial com todas as regras do xadrez, em Londres, após uma espécie de convenção com os melhores jogadores da época na Europa. Stauton, inclusive, foi figura-chave no processo de universalização: ele também criou o design oficial e imprescindível das peças, que usamos até hoje! Ele também foi um jogador fortíssimo, se destacando durante dez anos (1842-1852) e sendo, na época, considerado o jogador mais forte do mundo.
Notavelmente, suas regras incluíam um padrão oficial para o afogamento, obrigando a partida a se encerrar em empate, e determinava as possibilidades de promoções de peças. O livro foi inicialmente adotado no Clube de Xadrez de Londres e a partir da década de 1860 foi aceito por toda a Europa.
O primeiro Campeonato Mundial de Xadrez
O livro de Howard Stauton foi o limiar para o primeiro Campeonato Mundial de Xadrez, ainda muito diferente de como o conhecemos hoje. Basicamente, uma assembleia nomeava os jogadores de destaque que realizariam uma partida e o vencedor se tornaria o primeiro campeão mundial de xadrez; depois, este campeão escolheria, a partir de alguns candidatos, o seu oponente.
Em 1886 os dois principais enxadristas da época, Wilhem Steinitz—que havia varrido o chão com seus pares por dez anos—, e Johannes Zuketort—que havia vencido um torneio fechado com 14 jogadores proeminentes, vagamente semelhante ao Torneio de Candidatos atual—, se enfrentaram.
O match
Apesar de suas origens europeias, Steinitz e Zuketort se enfrentaram por 20 partidas ao redor dos Estados Unidos, começando em Nova York e passando por lugares lendários e ainda importantíssimos para o xadrez: os clubes de Saint Louis e Nova Orleans. E tinha controle de tempo: duas horas para os primeiros 30 lances e uma hora para os próximos 15 lances subsequentes, indefinidamente. Ou seja, cada partida podia durar dias ou até mesmo semanas.
As viagens, o tempo de jogo e a resiliência de seu oponente foram fatores pesados demais para Johannes Zuketort. Na vigésima partida, ele desistiu de prosseguir o torneio—Steinitz tinha 10 vitórias contra 5, além de 5 empates. Assim, o tcheco Wilhem Steinitz se tornou o primeiro campeão mundial de xadrez. O placar hoje em dia seria de 12,5 x 7,5 em seu favor.
Campeões mundiais de xadrez pré-FIDE
Como mencionado, o campeonato mundial de xadrez ainda era feito sem muita regulamentação; apesar de existirem regras, não havia uma entidade que controlava e organizava os torneios, sendo estes de responsabilidade do próprio campeão. Muitos jogadores extremamente renomados foram campeões mundiais neste período. Pela ordem:
- Steinitz (1886-1893);
- Lasker (1894-1920);
- Capablanca (1921-1926);
- Alekhine (1927-1934);
- Euwe (1935-1936);
- Alekhine (1937-1946)
O próximo torneio (1948) foi organizado pela entidade regulatória: a FIDE.
Criação da FIDE e os primeiros torneios oficiais
Apesar de ter coordenado o primeiro campeonato mundial apenas em 1948, a FIDE (Fédération Internationale des Échecs, ou Federação Internacional de Xadrez) já existia desde 1924. Com o xadrez se tornando mais e mais popular, a demanda pela entidade regulatória foi natural. O primeiro torneio organizado pela federação foi a Olimpíada de Xadrez de 1927, vencida pela Hungria.
Essa demora para que a federação coordenasse o campeonato mundial foi muito devido à pressão do então campeão mundial, José Raúl Capablanca, para a existência de uma premiação oficial (US$10.000, valor bem considerável para a época). Foi até criado um título pela entidade, “Campeão da FIDE”, mas não foi bem aceito pelos enxadristas, até porque este campeão foi derrotado em 1929 pelo então campeão mundial, Alekhine.
A Segunda Guerra Mundial foi outro fator-chave para a demora: Alekhine já concordava em jogar com as regras impostas pela organização. Mas, naturalmente, a federação interrompeu suas atividades devido ao confronto, e Alexander Alekhine faleceu antes que houvesse oportunidade para enfrentar outro jogador. Essa situação fez com que os torneios, inicialmente masculinos, fossem organizados ao redor do mundo como “zonais” e “interzonais”, e um modelo adaptado é utilizado nos dias atuais.
Então, em 1947, a federação soviética de xadrez se filiou à FIDE, e assim foi organizado um “Torneio Mundial de Xadrez” entre nomes proeminentes da época e muitíssimo relevantes até hoje: Vasily Smyslov, Paul Keres, Reuben Fine, Samuel Reshevsky, Max Euwe e um tal Mikhail Botvinnik, que venceu o torneio. Botvinnik, portanto, se tornou o primeiro campeão mundial pós-FIDE.
Já o primeiro torneio mundial feminino de xadrez aconteceu em 1950, em moldes similares, devido ao falecimento em 1944 da então campeã mundial Vera Menchik, vencido por Lyudmilla Rudenko.
E assim chegamos ao começo do domínio soviético no xadrez em ambas as categorias, mas isso é assunto para outro artigo. Até lá!